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Carta de uma gata adotada

O artigo de hoje é diferente. A autora é diferente. Tudo é diferente depois da adoção.

Foram semanas difíceis. Tristes, sabe? Dois de nós tinham partido recentemente. Passaram suas vidas quase todas ali. Chegaram e ficaram. Nunca foram escolhidos. Não tiveram a chance de ter uma casa, uma família só sua. Digo só deles, porque também éramos uma família. Uma família de muitos para todos, que fazem tudo que podem para nos sentirmos acolhidos, cuidados e amados.

Minha história tinha tudo para ser igual a deles. Ninguém me falava, mas era quase certo que eu moraria lá para sempre. Quando cheguei, há dois anos, logo perceberam que cuidariam de mim por um bom tempo. Mal conseguia andar e nem sabia o que era ou como usar a caixa de areia. Ouvi dizerem que tenho discopatia, uma lesão na coluna causada por um trauma. Acreditam que me puxaram pelo rabo quando eu morava na rua. Eu não lembro o que aconteceu, acho que era muito pequena – quer dizer, menor do que eu ainda sou.

Até que, um dia, eu ouvi o telefone tocar. Era uma moça, que não tinha agendado visita, mas perguntava se poderia entrar para me ver, que era seu aniversário e estava com seu filho pequeno na porta do Centro Municipal de Adoção. Pensei: ué, mas me ver? Por que eu? Não entendi nada. Chovia. Então, eu vi todo mundo conversando e se ajeitando para tentar atendê-la.

Carol Zerbato, Ben e Jenna.

Foi quando me colocaram na caixinha de transporte e me levaram. Logo pensei que quando a moça – ou a criança – me visse tentando andar, desistiria de qualquer intenção sobre mim. Os dois entraram pela porta do gatil e eu saí pela porta da caixinha. O menino tinha cara de anjo, com o cabelo cheio de cachinhos. Fui correndo – do meu jeito, né – para ele. Logo ganhei um carinho na cabeça. Uma mãozinha pequena, macia, do tamanho do meu focinho. Enquanto isso, explicavam para a moça que eu precisava de cuidados especiais, não andava direito, tampouco sabia ir ao banheiro dos gatos sozinha. Tinha que ficar em um espaço controlado ou usar fralda constantemente. A moça parecia assustada, como se estivesse com medo de não conseguir cuidar de mim do jeito certo. Foi quando o menino disse:

–  Ela só não anda direito. Todo mundo tem alguma coisa diferente.

A moça concordou. Parecia orgulhosa do menino-anjo. E eu nem acreditava que uma criança não estava se importando de eu não poder pular ou brincar como todos os outros tantos animais que estavam ali, também esperando o dia de serem escolhidos.

Demorou um pouco para a moça voltar, teve que assinar um montão de papéis para poder me levar. Eu já estava até pensando que era bom demais para ser verdade e que tinham pensado melhor e desistido de mim. Mas eles voltaram. E seguimos para a casa. Agora, a nossa casa.

Conheci minha outra irmã ainda na porta. Ela também foi adotada já adulta e me deu uma rosnada daquelas quando cheguei. Ficamos separadas por algum tempo, até ela se acostumar comigo e eu, com ela. Mas o menino-anjo, antes de ir para a escola, passava as manhãs sentado do meu lado, assistindo desenho e conversando comigo, para eu não me sentir sozinha.

Jenna e Deloris

No começo, a moça me colocava a fralda e eu tirava. Desenvolvi até uma técnica: entrava debaixo da cômoda do quarto dela e saía; a fralda esbarrava na parte de baixo do móvel e ficava por lá mesmo. Na mesma semana em que cheguei, um moço de branco foi me ver e comecei a tomar uns comprimidos que a moça esfarela e mistura naquela comida de gato que parece uma sopinha. Eu finjo que nem percebo e como tudo, para ela ficar feliz.

Hoje, já me acostumei com a fralda e não fico mais separada da minha irmã. Ela ainda rosna para mim, mas devo contar um segredo: só quando a moça, a Carol, minha mãe, ou o menino-anjo, o Ben, meu irmão, estão por perto. Quando não estão vendo, ela brinca comigo e até deita pertinho de mim. Estou conseguindo andar por alguns metros e ficar de pé por um tempinho. Até aprendi a subir na cama!

Jenna – autora desta carta

Nos primeiros dias, a minha mãe estava sempre agitada. Parecia viver em uma crise de ansiedade contínua, sempre no próximo compromisso: o próximo trabalho para entregar, a próxima lição de casa do filho para acompanhar, a próxima louça para lavar; pensava no almoço em como arrumaria tempo para fazer o jantar.

E não é querendo me elogiar, não, mas, ainda que, aos olhos de muitos, eu parecesse uma responsabilidade a mais, depois da minha chegada, ela foi se acalmando. Começou a aprender a entender o agora. Acho que porque eu sou a prova viva de que a gente nunca sabe o que vai ser depois. E, no meu caso, ele foi muito mais feliz do que eu sequer poderia imaginar.

Jenna – autora desta carta

Ronronadas,

Jenna Rink.

P.S.: Minha mãe me colocou esse nome porque me acha muito parecida com uma atriz bonita, de um filme do tempo dela, chamado De Repente 30. Eu é que não vou discordar.

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Escrito por Carol Zerbato

Escritora, publicitária e ativista pelos direitos dos animais, Carol Zerbato já foi locutora e repórter; trabalhou com comunicação corporativa e assessoria de imprensa; e atuou como redatora e revisora. Foi uma das embaixadoras da campanha contra a Leishmaniose Canina e é uma das madrinhas do Santuário de Elefantes Brasil. É autora do livro Ativismo Consciente: A importância da Inteligência Emocional na Causa Animal, criadora da Cachorra Carol, palestrante e mãe de três filhos: Rachel, a mais velha, uma labralata; Deloris, a do meio, uma gata vira-lata; e Ben, o caçula, um humano.

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